Quando, há 70 anos, a primeira bomba atómica, a
Little Boy, explodiu sobre Hiroshima, 70 mil pessoas morreram, e outras
tantas morreriam nas semanas imediatamente subsequentes. Talvez não
fosse logo evidente que uma nova etapa na existência humana tinha
começado, mas os norteamericanos deram-se logo conta do impacto militar e
humano. Apesar de saberem que os japoneses queriam, ainda antes d'a
Bomba (como passaria a ser designada na linguagem universal), negociar a
paz através de uma mediação soviética (a que Estaline se esquivou), os
norteamericanos não hesitaram, três dias depois, no dia 9 agosto, em
lançar sobre Nagasaki a segunda bomba. Outras 74 mil pessoas morreram.
Nagasaki-depois-de-Hiroshima – isto
é: repetir Hiroshima sabendo-se o suficiente sobre o grau da destruição
provocada – não suscitou apenas a discussão sobre o caráter militarmente
redundante da segunda bomba e do seu significado quase estritamente
político: o Japão preparava-se para a rendição, o que tornava supérflua a
destruição de Nagasaki (se não mesmo até a de Hiroshima), mas era
preciso sublinhar perante os soviéticos e o mundo a superioridade
arrasadora dos EUA. Ponto de chegada de uma escalada alucinante na
construção de uma capacidade técnica de destruição definitiva sem
paralelo na história – Truman explicou-a aos japoneses como “uma chuva
de destruição [a rain of ruin] vinda do céu, diferente de tudo o que se
tenha visto nesta terra” (comunicado presidencial de 6.8.1945) -, a
Bomba, a par de Auschwitz, tornou-se um símbolo do triunfo da
civilização tecnológica e da sua intrínseca insensibilidade social e
humana, capaz de reorganizar o mundo precisamente porque capaz de
destruir um número inconcebível de vidas através de processos expeditos,
incompatíveis com qualquer discriminação entre combatente e civil e com
qualquer reflexão sobre o valor intrínseco da vida. A história da
guerra foi sempre feita de danos colaterais, para usar o neo-militarês
dos últimos vinte anos. Mas nunca fora feita de semelhante grau de
indiscriminação e amplitude de destruição. Não é tanto a segunda que
caracteriza a Bomba; é sobretudo a primeira.
Além disto, como estudou Garry Wills
(autor de Bomb Power, 2010), a preparação da bomba atómica foi
acompanhada de uma bateria de leis que “contribuíram para criar os
regimes de segurança e de vigilância sob os quais vivemos hoje,
concedendo ao [poder] executivo uma margem de ação considerável, não só
em tempo de guerra mas também em tempo de paz”. Os novos instrumentos da
estratégia planetária de Washington que nascem nesses anos - a Comissão
da Energia Atómica, a CIA, a Agência de Segurança Nacional (NSA) -
dependem diretamente do Presidente dos EUA, que “pode alocar verbas,
gerir as redes de espionagem e usar a mais terrorífica das armas de
destruição massiva sem qualquer controlo por parte dos poderes
legislativo e judiciário”. De facto, e como escreve David Marcus (Le
Monde, 6.8.2015), “a arma nuclear [contribuiu fortemente] para minar o
processo democrático”, confirmando assim uma máxima muito óbvia: a
guerra é sempre o melhor instrumento de manipulação política, o melhor
pretexto para a suspensão de direitos, liberdades e garantias, do
próprio Estado de Direito. Marcus cita Dick Cheney, vicepresidente de
Bush Jr., que recordava em 2008 que o presidente dos EUA tem o poder de
“desencadear um ataque devastador como o mundo nunca viu [sem] precisar
de consultar ninguém, sem precisar de convocar o Congresso, sem precisar
de o comunicar ao poder judicial.” Na peculiar explicação de Cheney,
“esta prerrogativa decorre da natureza do mundo em que vivemos”...
Quem julga que vivemos hoje com mais
garantias cívicas do que aquelas de que dispunham as chamadas
democracias nos anos 30 ou 40, que muito se melhorou na transparência do
exercício do poder, precisa de avaliar as consequências destes 70 anos
de securitarismo nuclear que atravessou a Guerra Fria mas que se
prolongou, e acentuou, nos últimos 25 anos. A Bomba “desregulou a nossa
bússola moral e política. (…) Vivemos ainda hoje à sombra deste cogumelo
atómico de opacidade e estado de emergência permanente” que permite que
o aparelho militar e securitário dos EUA – e o da maioria dos Estados –
se arrogue o direito, e a necessidade, de vigiar/escutar
indiscriminadamente os seus cidadãos, invocando uma natureza preventiva
do processo para não precisar de qualquer autorização judicial, isto é,
desrespeitando as regras mais básicas do mesmo Estado de Direito que
estas políticas dizem querer preservar.
A Bomba deu origem ao Big Brother
(que se finge) democrático. Mas Hiroshima foi também um momento fundador
de uma cultura da paz através da preservação da memória do horror
total, de outra forma de Mal absoluto (ver Ran Zwigenberg, Hiroshima.
The Origins of Global Memory Culture, 2014). Os EUA, que ocuparam o
Japão até 1952, recusaram-se a tratar os sobreviventes, os hibakusha,
mas obrigaram-nos a submeter-se aos estudos da Atomic Bomb Casualty
Commission criada em 1946. Tornaram-nos verdadeiras cobaias, ao mesmo
tempo que se lhes proibia transmitir a memória de Hiroshima: até ao fim
da ocupação, toda a informação sobre as duas explosões nucleares foi
censurada, confiscadas todas as fotografias. Só em 1957 é que os
hibakusha passaram a receber um tratamento especial, por parte das
autoridades japonesas, mas muitos não se registaram para evitar “a
discriminação de que eram vítimas. 'Mesmo em família não se falava,
procurávamos esconder que éramos atomizados: dizia-se que as radiações
se transmitiriam geneticamente, que os nossos filhos nasceriam
deficientes, que morreríamos cedo…'”, lembra uma das sobreviventes (Le
Monde, 5.8.2015). Exatamente como sucedeu com os sobreviventes de
Auschwitz, os hibakusha ocultaram a identidade e a memória que os
tornava testemunhos de exceção.
Sobre o silêncio das vítimas de
Hiroshima construiu-se a viabilidade de todas as guerras desde há 70
anos. Por algum motivo Kenneth Bainbridge, o físico que dirigiu o ensaio
nuclear final de 16 de julho de 1945, ao ver os seus resultados, terá
dito a Robert Oppenheimer, o chefe do Manhattan Project: “A partir de
agora, somos todos uns filhos da puta” (“Now we are all sons of
bitches”).