terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Bush, Cheney e os crimes de guerra (Argemiro Ferreira)

(Da Tribuna da Imprensa)

O pouco dotado presidente George W. Bush e seu vice todo poderoso, Dick Cheney, preparam-se para festejar o Natal e, a 20 de janeiro, tomar outro rumo. O governo deles desceu a um nível de aprovação mais baixo do que qualquer outro nos 232 anos de história do país. Avaliado e julgado com rigor dentro e fora de casa, sai quase escorraçado. Passa o poder depois de sofrer repúdio esmagador na eleição.

Pior ainda: dificilmente Bush e Cheney conseguirão descansar do pesadelo que legaram ao país. Continuarão a ser execrados em relatos contundentes como o do livro "The Dark Side - The Inside Story of How the War on Terror Turned into a War on American Ideals", lançado em julho pela jornalista Jane Mayer. Ela expôs o lado mais sinistro e repulsivo da dupla: a guerra aos próprios ideais americanos.

"The Dark Side" devassou a trama interna dentro do governo que, a pretexto de responder ao ataque de 11 de setembro de 2001, recorreu a operações abusivas de segurança nacional, frequentemente ilegais e cujo extremismo é comparável ao dos próprios terroristas que atacaram o World Trade Center e o Pentágono - em especial, as prisões secretas pelo mundo e o uso explícito da tortura, violando as leis do país e tratados internacionais.

À frente de tarefas macabras

Antes desse livro, o trabalho da autora já fora consagrado profissionalmente no "Wall Street Journal" (em fase bem anterior à venda do jornal, em 2008, ao império Murdoch de mídia); na revista "The New Yorker"; e em mais dois livros - "Landslide", sobre a desintegração do governo Ronald Reagan entre 1984 e 1988, e "Strange Justice", sobre a aprovação controvertida do juiz Clarence Thomas para a Suprema Corte.

A expressão "dark side" (lado maligno, escuro, sinistro), que dá título ao livro, foi usada no programa "Meet the Press", da NBC, ao ser o entrevistado Cheney, a 11 de setembro de 2006, perguntado sobre o lado sombrio que se atribuia ao papel dele no governo. "Parte do meu trabalho é pensar o impensável, encarar o que pode haver no arsenal terrorista contra nós", tentou justificar ele.

No livro, Jane Mayer afirma que os arquitetos da rede de prisões secretas para torturar detidos, usadas pelo mundo durante os dois mandatos de Bush na Casa Branca, integravam grupo pequeno, mas poderoso, enquistado no governo. Cheney estava no centro do esforço mas delegava muitas das operações a outros, cabendo ao seu conselheiro jurídico David Addington um conjunto de tarefas macabras.

Descrito como prepotente, implacável e arrogante, Addington era o executor da estratégia e, na prática, neutralizava qualquer desafio aos abusos e excessos com a alegação de que tudo o que se fazia tinha sido sancionado pelo próprio presidente. Ao mesmo tempo, descartava como "fraqueza" ou "ingenuidade" todo tipo de questionamento de ordem jurídica e moral.

Advogados para qualquer papel

Ao analisar o livro para o "New York Times", o professor de História Alan Brinkley - da Universidade de Columbia, em Nova York onde era o decano de sua especialidade entre entre 2003 e 2008 - referiu-se particularmente ao infame memorando de John Yoo, hoje professor de Direito na Universidade de Berkeley e que servia antes no Escritório de Assessoria Jurídica do Departamento de Justiça.

Para dar cobertura legal à tortura, Yoo simplesmente buscou "redefinir" o que é tortura. Outros que contribuiram para o vergonhoso esforço pro-tortura foram George Tenet, diretor da CIA e sempre inclinado a agradar superiores; Alberto Gonzalez, que passou de conselheiro jurídico de Bush na Casa Branca a Procurador Geral, até ser forçado a renunciar; e William Haynes, conselheiro jurídico do Pentágono.

Graças a tal exército de subservientes ambiciosos, muitos deles só contratados por se prontificarem a alugar o conhecimento fornecendo aos donos do poder pareceres infames de que precisavam para encobrir ações indecentes e ofensivas aos direitos humanos, a chamada "guerra ao terrorismo" de Bush tornou-se, como diz o título de "The Dark Side", uma guerra aos próprios ideais americanos.

Todos eles, para Brinkley, tiveram papéis vitais. "Instado por Cheney e seu protegido Addington, Bush invalidou as convenções de Genebra e, sem o admitir publicamente, sustou o habeas corpus para suspeitos de terrorismo - obstáculos importantes à tortura. Além disso, subverteu-se a convenção internacional contra a tortura (de 1984) que, sob a liderança dos EUA, definira a tortura pela primeira vez.

"Isso é o que os inimigos fazem"

Mayer cita ainda no livro o uso do ex-psicólogo militar James Mitchell, que na década de 1950 conduzia na CIA o programa militar secreto SERE, que ensinava pessoal de alto risco a suportar torturas no caso de captura. O programa, cuja sigla significa "Sobreviver, Evadir, Resistir, Fugir", foi adaptado para estudar o nível de dor e humilhação que cada torturado pode suportar. Tornou-se o padrão para interrogar e torturar.

Introduzidos ao programa na CIA, agentes do FBI indignaram-se com as táticas, também consideradas ineficazes, e se retiraram. "Isso nós não fazemos. Isso é o que nossos inimigos fazem", disse um. Parte do que Mayer relatou também já aparecera antes graças a outros jornalistas - como James Risen e Scott Shane (do "New York Times"), Dana Priest ("Washington Post") e Seymour Hersh ("The New Yorker").

Houve oposição de alguns no Departamento de Estado, FBI, CIA e Congresso mas pouca gente ousou confrontar Cheney - "claramente a fonte daquelas políticas", segundo Mayer. Entre os poucos, um pequeno e corajoso grupo de advogados que viam aquilo como ilegal e imoral. Foi o caso de Jack Goldsmith (Departamento de Justiça), Alberto Mora (Marinha) e Matthew Waxman (Pentágono). Não adiantou.

Talvez Bush e Cheney ainda consigam dormir à noite. Mas sabem que vão ficar na história - e antes da morte ainda haverá o risco de serem chamados a enfrentar um tribunal internacional, como os criminosos de guerra depois da derrota nazista na II Guerra Mundial.
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segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

George Bush, o enviado de Deus - Argemiro Ferreira

Enquanto George W. Bush espera a hora de deixar a Casa Branca e tentar esquecer seu legado desastroso e em especial a guerra do Iraque os americanos refletem sobre a aventura à qual foram arrastados. Até gente que o apoiou no primeiro momento hoje julga-se enganada. E ele próprio declarou há dias, em entrevista à rede ABC, ter errado por causa das informações de inteligência.

Outra farsa. A partir do que ele próprio dizia, inclusive ao autor do livro "Plan of Attack", Bob Woodward, estava obcecado pelo Iraque - como se fosse um cruzado cristão empenhado em derrotar muçulmanos infiéis. Certa vez, ao analisar uma entrevista do presidente, o colunista Richard Cohen, do "Washington Post", não hesitou em definí-lo: "É o próprio aiatolá da América".

Um ano depois de lançada a guerra as tropas americanas, em prazo de apenas duas semanas, já sofriam mais baixas (uns 100 mortos) do que em qualquer mês desde a invasão. A aventura bushista foi um desastre. Como ele nunca reconheceu o erro, alguns concluiram que achava estar fazendo "a vontade de Deus", cumprindo "missão divina". O próprio Bush declarou uma vez que fora "convocado".

Seja feita a sua vontade

Sua retórica, amplificada desde os primeiros discursos sobre o 11/9, foi a do bem contra o mal - "nós somos bons", "eles são o mal que temos de derrotar". Na sessão conjunta do Congresso, a 20 de setembro de 2001, ameaçou o mundo: "Quem não está conosco, está com os terroristas". A palavra "cruzada" veio da boca de Bush já no primeiro domingo depois do ataque ao World Trade Center.

Isso alarmou em especial os europeus. Jornais reagiram em editorial. O Grande Mufti da mesquita de Marselha, Soheib Bensheikh, achou "extremamente infeliz" a palavra usada. Lembrava as operações militares bárbaras dos cristãos contra os muçulmanos. Bush fez até visita às carreiras a um centro islâmico, na tentativa de remendar. Era tarde. Osama Bin Laden já tirava partido do escorregão.

"É a nova cruzada cristã-judaica liderada pelo cruzado Bush, sob a bandeira da cruz", disse o líder da al-Qaeda. O temor maior na Europa era menos a gaffe do que a retórica da guerra entre o bem e o mal. Em editorial o "Le Monde" avisou: "Se essa guerra tomar uma forma que afronte a opinião dos árabes moderados, se tiver a aparência de choque de civilizações, o risco é ajudar o objetivo de Bin Laden".

A analista política Dominique Moisi, do Instituto Francês de Relações Exteriores, observou que Bush caminhava "numa linha fina", pois a linguagem em preto-e-branco usada em casa para ganhar apoio dos americanos ameaçava lá fora a coalizão internacional que tentava construir. A confusão entre política e religião, disse, "corre o risco de encorajar um choque de civilizações no sentido religioso".

A guerra santa da América

Muitos líderes no mundo consideravam os terroristas "o mal", mas não identificavam os EUA com "o bem". Tony Blair via os valores da civilização contra o fanatismo. A controvérsia ganhou destaque porque Bush reincidiu, ao se referir em janeiro de 2002 ao "eixo do mal", Iraque-Irã-Coréia do Norte. Nos EUA a mídia e a oposição aderiram à retórica, no resto do mundo não.

Em outros países a suposta relação de Bush com Deus virou apenas motivo de chacota. As capas de revistas na Europa refletiam isso, com fotos do presidente americano a rezar com devoção. Título da conservadora "Le Point": "A Guerra Santa de Bush". Uma revista de música popular destacou na capa: "A América integrista declara guerra em nome de Deus".

Em nada ajudou a promessa de Bush de ficar no Iraque "tanto tempo quanto for necessário, nem um dia mais". Era a mesma frase de Ariel Sharon ao invadir o Líbano em 1982 (e ficar 22 anos). Tão pouco ajudou a declaração do chefe do Pentágono, Donald Rumsfeld, ao acusar a "velha Europa" (referência agressiva à França e Alemanha, críticos da guerra) de ser "simplesmente anti-religiosa".

"Só recorro ao pai mais alto"

O arcebispo de Cantuária, Rowan Williams, e o cardeal católico Cormac Murphy-O'Connor, rejeitaram a alegação de se tratar de uma "guerra moral". Condenaram o uso de simbolismo cristão em defesa da ação militar. Um general de Bush, William "Jerry" Boykin, excedeu-se. "A guerra é contra Satã", disse. "Bush foi colocado na Casa Branca por Deus, não pelos votos, pois o favorecido na votação foi Al Gore."

Só faltava o próprio Bush assumir a guerra santa. E ele o fez pelo menos uma vez, em abril de 2004. Maureen Dowd registrou no "New York Times": "Bush reiterou que sua missão é ditada do alto (...), pelo todo-poderoso". Cohen também percebeu. E o livro de Woodward usou entrevista dele, de dezembro de 2003, na qual o presidente apoiava-se no idealismo e na religião para justificar a guerra.

Declarou seu dever "libertar pessoas". Revelou que depois da decisão de atacar o Iraque, rezou do lado de fora do salão Oval da Casa Branca, em busca de "força para cumprir a vontade do Senhor". Explicou: "Rezo para ser o mais possível um bom mensageiro da vontade de Deus". Woodward perguntou se consultara o pai, ex-presidente. "Seria o pai errado. Há o pai mais alto. Recorro a Ele", respondeu.

Cruzado cristão ou aiatolá fundamentalista, ele comandou a maior máquina de guerra que o mundo já conheceu. Contou com todas as armas de destruição em massa que o Iraque nunca teve.

(Tribuna da Imprensa)