segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

George Bush, o enviado de Deus - Argemiro Ferreira

Enquanto George W. Bush espera a hora de deixar a Casa Branca e tentar esquecer seu legado desastroso e em especial a guerra do Iraque os americanos refletem sobre a aventura à qual foram arrastados. Até gente que o apoiou no primeiro momento hoje julga-se enganada. E ele próprio declarou há dias, em entrevista à rede ABC, ter errado por causa das informações de inteligência.

Outra farsa. A partir do que ele próprio dizia, inclusive ao autor do livro "Plan of Attack", Bob Woodward, estava obcecado pelo Iraque - como se fosse um cruzado cristão empenhado em derrotar muçulmanos infiéis. Certa vez, ao analisar uma entrevista do presidente, o colunista Richard Cohen, do "Washington Post", não hesitou em definí-lo: "É o próprio aiatolá da América".

Um ano depois de lançada a guerra as tropas americanas, em prazo de apenas duas semanas, já sofriam mais baixas (uns 100 mortos) do que em qualquer mês desde a invasão. A aventura bushista foi um desastre. Como ele nunca reconheceu o erro, alguns concluiram que achava estar fazendo "a vontade de Deus", cumprindo "missão divina". O próprio Bush declarou uma vez que fora "convocado".

Seja feita a sua vontade

Sua retórica, amplificada desde os primeiros discursos sobre o 11/9, foi a do bem contra o mal - "nós somos bons", "eles são o mal que temos de derrotar". Na sessão conjunta do Congresso, a 20 de setembro de 2001, ameaçou o mundo: "Quem não está conosco, está com os terroristas". A palavra "cruzada" veio da boca de Bush já no primeiro domingo depois do ataque ao World Trade Center.

Isso alarmou em especial os europeus. Jornais reagiram em editorial. O Grande Mufti da mesquita de Marselha, Soheib Bensheikh, achou "extremamente infeliz" a palavra usada. Lembrava as operações militares bárbaras dos cristãos contra os muçulmanos. Bush fez até visita às carreiras a um centro islâmico, na tentativa de remendar. Era tarde. Osama Bin Laden já tirava partido do escorregão.

"É a nova cruzada cristã-judaica liderada pelo cruzado Bush, sob a bandeira da cruz", disse o líder da al-Qaeda. O temor maior na Europa era menos a gaffe do que a retórica da guerra entre o bem e o mal. Em editorial o "Le Monde" avisou: "Se essa guerra tomar uma forma que afronte a opinião dos árabes moderados, se tiver a aparência de choque de civilizações, o risco é ajudar o objetivo de Bin Laden".

A analista política Dominique Moisi, do Instituto Francês de Relações Exteriores, observou que Bush caminhava "numa linha fina", pois a linguagem em preto-e-branco usada em casa para ganhar apoio dos americanos ameaçava lá fora a coalizão internacional que tentava construir. A confusão entre política e religião, disse, "corre o risco de encorajar um choque de civilizações no sentido religioso".

A guerra santa da América

Muitos líderes no mundo consideravam os terroristas "o mal", mas não identificavam os EUA com "o bem". Tony Blair via os valores da civilização contra o fanatismo. A controvérsia ganhou destaque porque Bush reincidiu, ao se referir em janeiro de 2002 ao "eixo do mal", Iraque-Irã-Coréia do Norte. Nos EUA a mídia e a oposição aderiram à retórica, no resto do mundo não.

Em outros países a suposta relação de Bush com Deus virou apenas motivo de chacota. As capas de revistas na Europa refletiam isso, com fotos do presidente americano a rezar com devoção. Título da conservadora "Le Point": "A Guerra Santa de Bush". Uma revista de música popular destacou na capa: "A América integrista declara guerra em nome de Deus".

Em nada ajudou a promessa de Bush de ficar no Iraque "tanto tempo quanto for necessário, nem um dia mais". Era a mesma frase de Ariel Sharon ao invadir o Líbano em 1982 (e ficar 22 anos). Tão pouco ajudou a declaração do chefe do Pentágono, Donald Rumsfeld, ao acusar a "velha Europa" (referência agressiva à França e Alemanha, críticos da guerra) de ser "simplesmente anti-religiosa".

"Só recorro ao pai mais alto"

O arcebispo de Cantuária, Rowan Williams, e o cardeal católico Cormac Murphy-O'Connor, rejeitaram a alegação de se tratar de uma "guerra moral". Condenaram o uso de simbolismo cristão em defesa da ação militar. Um general de Bush, William "Jerry" Boykin, excedeu-se. "A guerra é contra Satã", disse. "Bush foi colocado na Casa Branca por Deus, não pelos votos, pois o favorecido na votação foi Al Gore."

Só faltava o próprio Bush assumir a guerra santa. E ele o fez pelo menos uma vez, em abril de 2004. Maureen Dowd registrou no "New York Times": "Bush reiterou que sua missão é ditada do alto (...), pelo todo-poderoso". Cohen também percebeu. E o livro de Woodward usou entrevista dele, de dezembro de 2003, na qual o presidente apoiava-se no idealismo e na religião para justificar a guerra.

Declarou seu dever "libertar pessoas". Revelou que depois da decisão de atacar o Iraque, rezou do lado de fora do salão Oval da Casa Branca, em busca de "força para cumprir a vontade do Senhor". Explicou: "Rezo para ser o mais possível um bom mensageiro da vontade de Deus". Woodward perguntou se consultara o pai, ex-presidente. "Seria o pai errado. Há o pai mais alto. Recorro a Ele", respondeu.

Cruzado cristão ou aiatolá fundamentalista, ele comandou a maior máquina de guerra que o mundo já conheceu. Contou com todas as armas de destruição em massa que o Iraque nunca teve.

(Tribuna da Imprensa)

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