Presença no Haiti cria dilema legal para estratégia de Obama
Caso se estenda por um longo período, a presença militar americana no Haiti poderá representar um desafio à política externa do presidente Barack Obama, que prega o multilateralismo e a diplomacia em vez da força.
Os Estados Unidos enviaram suas tropas ao Haiti a pedido do presidente René Préval, para auxiliar e garantir a segurança nos esforços de resgate e ajuda às vítimas do terremoto que devastou o país e matou milhares de pessoas.
Apesar de ser legal e estar prevista em situações de emergência como a do Haiti, a medida atraiu críticas e foi vista como uma "ocupação" por alguns países.
Segundo analistas, uma maneira de dar credibilidade à presença militar americana seria obter um aval das Nações Unidas.
"É importante que, no longo prazo, os Estados Unidos tenham uma autorização formal para que suas tropas atuem no Haiti", disse à BBC Brasil a analista Kara McDonald, especialista em planejamento multilateral de operações de paz do Council on Foreign Relations.
Apoio
Mesmo que, pela legislação internacional, a autorização do país anfitrião seja suficiente, um aval da ONU poderia garantir maior apoio internacional à ação americana, uma preocupação de Obama.
Desde que assumiu o governo, um ano atrás, o presidente tem se distanciado do discurso de seu antecessor, George W. Bush, que era acusado de ser isolacionista e de minar a imagem americana no exterior com estratégias unilaterais.
"Quanto mais tempo as tropas americanas ficarem no Haiti, mais importante será que tenham uma declaração de princípios clara", afirma McDonald.
Segundo McDonald, os Estados Unidos estão negociando com a ONU a possibilidade de suas tropas apoiarem as ações da Minustah (Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti, liderada pelo Brasil), que são responsáveis pela segurança pública no Haiti.
Com o envio de tropas adicionais anunciado nesta semana, o número de militares americanos no Haiti já chega a quase 16 mil homens, incluindo marinheiros e fuzileiros navais.
Esse contingente é maior do que o da Minustah, que tem 12,6 mil pessoas, sendo quase 9 mil militares.
Regras
"As regras de engajamento (que determinam em que situações a força pode ser usada em operações militares ou policiais) devem ser discutidas", diz McDonald.
Essas regras são necessárias para definir as responsabilidades no caso de algum crime que eventualmente viesse a ser cometido por um soldado americano, como, por exemplo, a morte de um civil em uma manifestação.
Segundo o especialista em legislação criminal internacional Michael Newton, da Universidade Vanderbilt, as forças americanas não estão sujeitas às leis do Haiti.
"Nesses casos, a norma é que tenham uma jurisdição criminal separada, que pode ser negociada com o país anfitrião. No caso de um crime cometido por um militar americano, é necessário saber quais são as regras de engajamento", disse Newton à BBC Brasil.
O especialista em assuntos militares e legislação criminal internacional David M. Crane, professor da Universidade de Syracuse, afirma que, pelas regras de engajamento utilizadas como padrão, já está prevista a punição de militares que ajam de maneira inadequada.
"Mas à medida que a situação (no Haiti) se desenvolve, o Status of Forces Agreement (acordo entre o país anfitrião e a nação estrangeira com tropas naquele país) deve ser muito mais detalhado", disse à BBC Brasil o especialista, que foi promotor-chefe do tribunal especial da ONU para crimes de guerra em Serra Leoa.
Críticas
Segundo especialistas em direito internacional consultados pela BBC Brasil, a presença de militares é prevista em casos de emergência humanitária, como no Haiti.
"Nessas ocasiões, é muito comum que o socorro tenha natureza militar. Qualquer país tem um efetivo militar melhor treinado para missões de socorro do que o pessoal civil", disse à BBC Brasil, por telefone, o jurista Francisco Rezek, ex-juiz do Tribunal Internacional de Justiça das Nações Unidas.
"Não deve ser confundida com uma presença militar, embora os socorristas sejam militares. É diferente da missão da ONU, liderada pelo Brasil, que tem caráter de manter a ordem pública e desempenhar ações militares", afirma Rezek.
No entanto, a presença das tropas americanas no Haiti tem provocado críticas de alguns países.
Um ministro francês disse nesta semana esperar esclarecimentos sobre o papel dos Estados Unidos no Haiti e afirmou que "é uma questão de ajudar o Haiti, não de ocupar o Haiti".
As declarações provocaram incômodo na Casa Branca e obrigaram o presidente francês, Nicolas Sarkozy, a divulgar um comunicado afirmando que seu país está "totalmente satisfeito com a cooperação" americana.
O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, disse que "o governo americano está se aproveitando da tragédia" para uma "ocupação militar no Haiti". A Bolívia também criticou a presença das tropas americanas.
Restrições
A presença militar americana também é encarada com restrições por alguns haitianos.
Os Estados Unidos invadiram o Haiti em 1915 e mantiveram suas tropas no país até 1934.
Em 2004, o presidente haitiano Jean-Bertrand Aristide foi retirado do país e levado ao exílio. Aristide diz que foi sequestrado pelo governo americano, alegação negada pela Casa Branca.
As críticas levaram o presidente haitiano a negar publicamente que a presença dos Estados Unidos seja uma ocupação.
"Os americanos estão aqui a nosso pedido e vieram nos ajudar em nossas necessidades humanitárias e de segurança", disse Préval em entrevista a uma rádio francesa.