A receita Bush para balcanizar a Bolívia (Argemiro Ferreira)
Apesar dos equívocos de sua linha editorial nos últimos anos, a "Folha de S. Paulo" ainda é capaz de surpreender e fazer diferença - ao contrário do resto da grande mídia - organizações Globo, "Veja", "Estadão" etc. Um crítico gringo-brasileiro dessa mídia, Colin Brayton, chamou atenção em seu blog irreverente (leia aqui: Sousaphone Tupiwire) para um artigo profético publicado há 15 meses pela "Folha".
Sob o título "A Balcanização da Bolívia", era assinado por Luiz Antonio Moniz Bandeira, jornalista que se tornou cientista político sem perder o vício de escrever para jornais. Desde que lançou o livro "Presença dos EUA no Brasil", no início da década de 1970, tem sido um dos melhores analistas das relações entre os EUA e a América Latina. E em julho do ano passado previu a missão oculta de Philip Goldberg: dividir a Bolívia.
Goldberg é o embaixador que o presidente boliviano Evo Morales expulsou do país devido à ingerência nos assuntos internos da Bolívia em meio à atual crise. A 15 de julho de 2007, Moniz Bandeira tinha ido direto ao ponto, ao alertar: "Esse diplomata tem experiência em conflitos étnicos e tendências separatistas, que irromperam no Leste europeu após a desintegração da Iugoslávia."
A missão e as credenciais
Ele lembrou que de 1994 a 1996, Goldberg trabalhara na questão da Bósnia, no Departamento de Estado; fora assistente especial do embaixador Richard Holbrooke, o artífice da desintegração da Iugoslávia; e servira como chefe da Missão dos EUA em Pristina, Kosovo (2004-06), onde orientou a separação dos Estados da Sérvia e Montenegro, após haver sido ministro conselheiro na Embaixada dos EUA em Santiago do Chile (2001-04).
É bem conhecida a atração particular que a riqueza energética alheia exerce sobre a dupla petrolífera Bush-Cheney. E Moniz alertou então para os recursos naturais de Santa Cruz de la Sierra, "onde estão 2,8 trilhões de pés cúbicos de gás dos 26,7 trilhões de reservas provadas da Bolívia. Se somadas às prováveis, o volume sobe a 48,7 trilhões de pés cúbicos".
A suspeita óbvia em La Paz, como também observara Moniz na época, era de que Golberg tinha sido escolhido a dedo para "conduzir o processo de separação de Santa Cruz de la Sierra, caso ela ocorra após a aprovação da nova Constituição e em meio à exacerbação das tensões étnicas, sociais e políticas, aguçadas pelo choque de interesses econômicos das distintas regiões da Bolívia".
Ante o quadro atual naquele país, só resta dizer que Goldberg cumpriu a missão. A presença fortaleceu a rebelião separatista, ratificando o poder da ação quase sempre desagregadora da diplomacia americana quando a riqueza energética de um país está em jogo. Depois da II Guerra, isso ficou claro a partir do caso conspícuo do golpe da CIA no Irã em 1953, para derrubar Mohamed Mossadegh e instalar Reza Pahlevi no poder.
Dividir para tomar a riqueza
No Iraque a primeira aposta dos EUA após a saída das tropas iraquianas do Kuwait foi no separatismo, de novo através da CIA, que armou e financiou os curdos, depois abandonados à própria sorte por George Bush pai. A idéia do separatismo não vingou em 2003 porque países árabes aliados dos EUA, como a Arábia Saudita, condicionaram o apoio a garantias de
que a integridade territorial seria mantida.
Como a prioridade maior é para o controle dos recursos energéticos, o governo Bush não vê incoerência em ficar contra a separação da rebelde Ossétia do Sul, com população de maioria russa, que se declarou independente da Geórgia. Nesse caso só consegue pensar no oleoduto que atravessa a Geórgia, levando o petróleo do Azerbaijão, capaz de reduzir a dependência do Ocidente do produto do Oriente Médio.
Mas do lado de cá do mundo, na nossa América - em oposição à deles, ao norte - a pergunta é se os EUA estão obstinados em retalhar nossos países. Na sua edição do outono de 1999, a importante revista "Foreign Policy" publicou um ensaio sob o título "Too Many Flags?" (Bandeiras demais?), assinado por um pesquisador da Universidade de Harvard, Juan Enriquez-Cabot, reclamando exatamente isso.
Na África, Ásia e África, argumentou Enriquez-Cabot, as nações se dividem em ritmo sem precedentes, mas o hemisfério ocidental tem ficado imune aos impulsos secessionistas. O ensaio alegou que as fronteiras das Américas não são tão estáveis como parecem. E que países pequenos como Luxemburgo, Cingapura e Suíça estão entre os que mais prosperaram depois da II Guerra Mundial.
O porrete sem a fala macia
Entre os exemplos dados por ele estavam as nações indígenas - os maias teriam parte do México e Guatemala; os mapuches, do Chile. Não basta para justificar a paranóia de quem teme complôs contra a Amazônia? Ianomâmis independentes com partes do Brasil e Venezuela, conforme parecem sonhar ONGs da Europa e EUA? Enriquez diz que em países em desenvolvimento os mais pobres dos pobres - maias, mapuches - se perguntam que benefícios reais têm com a atual identidade nacional.
Relacionando o artigo do acadêmico de Harvard a certos dados citados na época pelo "Economist", de Londres, Andrés Oppenheimer, colunista do "Miami Herald" dedicado a questões hemisféricas, apaixonou-se pela idéia. E concluiu que o mapa latino-americano será diferente em 2050. "O mundo tinha 62 países em 1914. Em 1946 o total já era 74. Hoje já pulou para 193", argumentou.
Enriquez vai mais longe. Vê países como corporações no império globalizante do neoliberalismo: "Hoje os governos que querem manter as fronteiras intactas têm de tratar os cidadãos como acionistas, que podem vender as ações, forçar mudanças na administração ou reduzir o tamanho do estado". Quanto mais globalizado o mundo, menos traumática será para os nacionalistas a divisão de seus estados, diz. "A globalização reduz o mundo às suas partes componentes, mesmo quando junta essas partes".
Para ele, os governos do hemisfério só sobreviverão com as atuais fronteiras se derem mais autonomia a grupos regionais sem insistir nas "velhas doutrinas autoritárias obcecadas por soberania". Notaram o horror à soberania alheia? Ted Roosevelt, ao separar o Panamá da Colômbia e roubar o canal, usava porrete ("big stick") e fala macia ("speak softly"). Bush, com a IV Frota no Atlântico Sul, dispensa a conversa.
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