Carta de Esquivel (Nobel da Paz 1980) a Obama (Enviada por Maria José Latgé)
Ao dirigir-te esta carta o faço fraternalmente para, ao mesmo tempo,
expressar-te a preocupação e indignação de ver como a destruição e a
morte semeada em vários países, em nome da “liberdade e da
democracia”, duas palavras prostituídas e esvaziadas de conteúdo,
terminam justificando o assassinato e são festejadas como se tratasse
de um acontecimento desportivo.
Indignação pela atitude de setores da população dos Estados Unidos, de
chefes de Estado europeus e de outros países que saíram a apoiar o
assassinato de Bin Laden, ordenado por teu governo, e tua complacência
em nome de uma suposta justiça. Não procuraram detê-lo e julgá-lo
pelos crimes supostamente cometidos, o que gera maior dúvida: o
objetivo foi assassiná-lo.
Os mortos não falam e o medo do justiçado, que poderia dizer coisas
inconvenientes para os EUA, resultou no assassinato e na tentativa de
assegurar que “morto o cão, terminou a raiva”, sem levar em conta que
não fazem outra coisa que incrementá-la.
Quando te outorgaram o Prêmio Nobel da Paz, do qual somos
depositários, te enviei uma carta que dizia: “Barack, me surpreendeu
muito que tenham te outorgado o Nobel da Paz, mas agora que o recebeu
deve colocá-lo a serviço da paz entre os povos; tens toda a
possibilidade de fazê-lo, de terminar as guerras e começar a reverter
a situação que viveu teu país e o mundo”.
No entanto, ao invés disso, você incrementou o ódio e traiu os
princípios assumidos na campanha eleitoral frente ao teu povo, como
terminar com as guerras no Afeganistão e no Iraque e fechar as prisões
em Guantánamo e Abu Ghraib no Iraque. Não fez nada disso. Pelo
contrário, decidiu começar outra guerra contra a Líbia, apoiada pela
OTAN e por uma vergonhosa resolução das Nações Unidas. Esse alto
organismo, apequenado e sem pensamento próprio, perdeu o rumo e está
submetido às veleidades e interesses das potências dominantes.
A base fundacional da ONU é a defesa e promoção da paz e da dignidade
entre os povos. Seu preâmbulo diz: “Nós os povos do mundo…”, hoje
ausentes deste alto organismo.
Quero recordar um místico e mestre que tem uma grande influência em
minha vida, o monge trapista da Abadia de Getsemani, em Kentucky,
Tomás Merton, que diz: “A maior necessidade de nosso tempo é limpar a
enorme massa de lixo mental e emocional que entope nossas mentes e
converte toda vida política e social em uma enfermidade de massas. Sem
essa limpeza doméstica não podemos começar a ver. E se não vemos não
podemos pensar”.
Você era muito jovem, Barack, durante a guerra do Vietnã e talvez não
lembre a luta do povo norteamericano para opor-se à guerra. Os mortos,
feridos e mutilados no Vietnã até o dia de hoje sofrem as
consequências dessa guerra.
Tomás Merton dizia, frente a um carimbo do Correio que acabava de
chegar, “The U.S. Army, key to Peace” (O Exército dos EUA, chave da
paz): “Nenhum exército é chave da paz. Nenhuma nação tem a chave de
nada que não seja a guerra. O poder não tem nada a ver com paz. Quanto
mais os homens aumentam o poder militar, mais violam e destroem a
paz”.
Acompanhei e compartilhei com os veteranos da guerra do Vietnã, em
particular Brian Wilson e seus companheiros que foram vítimas dessa
guerra e de todas as guerras.
A vida tem esse não sei o quê do imprevisto e surpreendente fragrância
e beleza que Deus nos deu para toda a humanidade e que devemos
proteger para deixar às gerações futuras uma vida mais justa e
fraterna, reestabelecendo o equilíbrio com a Mãe Terra.
Se não reagirmos para mudar a situação atual de soberba suicida que
está arrastando os povos a abismos profundos onde morre a esperança,
será difícil sair e ver a luz; a humanidade merece um destino melhor.
Você sabe que a esperança é como o lótus que cresce no barro e
floresce em todo seu esplendor mostrando sua beleza.
Leopoldo Marechal, grande escritor argentino, dizia que: “Do
labirinto, se sai por cima”.
E creio, Barack, que depois de seguir tua rota errando caminhos, você
se encontra em um labirinto sem poder encontrar a saída e te enterra
cada vez mais na violência, na incerteza, devorado pelo poder da
dominação, arrastado pelas grandes corporações, pelo complexo
industrial militar, e acredita ter todo o poder e que o mundo está aos
pés dos EUA porque impõem a força das armas e invade países com total
impunidade. É uma realidade dolorosa, mas também existe a resistência
dos povos que não claudicam frente aos poderosos.
As atrocidades cometidas por teu país no mundo são tão grandes que
dariam assunto para muita conversa. Isso é um desafio para os
historiadores que deverão investigar e saber dos comportamentos,
políticas, grandezas e mesquinharias que levaram os EUA á monocultura
das mentes que não permite ver outras realidades.
A Bin Laden, suposto autor ideológico do ataque às torres gêmeas, o
identificam como o Satã encarnado que aterrorizava o mundo e a
propaganda do teu governo o apontava como “o eixo do mal”. Isso serviu
de pretexto para declarar as guerras desejadas que o complexo
industrial militar necessitava para vender seus produtos de morte.
Você sabe que investigadores do trágico 11 de setembro assinalam que o
atentado teve muito de “auto golpe”, como o avião contra o Pentágono e
o esvaziamento prévio de escritórios das torres; atentado que deu
motivo para desatar a guerra contra o Iraque e o Afeganistão,
argumentando com a mentira e a soberba do poder que estão fazendo isso
para salvar o povo, em nome da “liberdade e defesa da democracia”, com
o cinismo de dizer que a morte de mulheres e crianças são “danos
colaterais”. Vivi isso no Iraque, em Bagdá, com os bombardeios na
cidade, no hospital pediátrico e no refúgio de crianças que foram
vítimas desses “danos colaterais”.
A palavra é esvaziada de valores e conteúdo, razão pela qual chamas o
assassinato de “morte” e que, por fim, os EUA “mataram” Bin Laden. Não
trato de justificá-lo sob nenhum conceito, sou contra todas as formas
de terrorismo, desde a praticada por esses grupos armados até o
terrorismo de Estado que o teu país exerce em diversas partes do mundo
apoiando ditadores, impondo bases militares e intervenção armada,
exercendo a violência para manter-se pelo terror no eixo do poder
mundial. Há um só eixo do mal? Como o chamarias?
Será que é por esse motivo que o povo dos EUA vive com tanto medo de
represálias daqueles que chamam de “eixo do mal”? É simplismo e
hipocrisia querer justificar o injustificável.
A Paz é uma dinâmica de vida nas relações entre as pessoas e os povos;
é um desafio à consciência da humanidade, seu caminho é trabalhoso,
cotidiano e portador de esperança, onde os povos são construtores de
sua própria vida e de sua própria história. A Paz não é dada de
presente, ela se constroi e isso é o que te falta, meu caro, coragem
para assumir a responsabilidade histórica com teu povo e a humanidade.
Não podes viver no labirinto do medo e da dominação daqueles que
governam os EUA, desconhecendo os tratados internacionais, os pactos e
protocolos, de governos que assinam, mas não ratificam nada e não
cumprem nenhum dos acordos, mas pretendem falar em nome da liberdade e
do direito. Como podes falar de Paz se não queres assumir nenhum
compromisso, a não ser com os interesses de teu país?
Como podes falar da liberdade quanto tens na prisão pessoas inocentes
em Guantánamo, nos EUA e nas prisões do Iraque, como a de Abu Ghraib e
do Afeganistão?
Como podes falar de direitos humanos e da dignidade dos povos quando
violas ambos permanentemente e bloqueia quem não compartilha tua
ideologia, obrigando-o a suportar teus abusos?
Como podes enviar forças militares ao Haiti, depois do terremoto
devastador, e não ajuda humanitária a esse povo sofrido?
Como podes falar de liberdade quando massacra povos no Oriente Médio e
propagas guerras e tortura, em conflitos intermináveis que sangram
palestinos e israelenses?
Barack, olha para cima de teu labirinto e poderá encontrar a estrela
para te guiar, ainda que saibas que nunca poderás alcançá-la, como bem
diz Eduardo Galeano. Busca a coerência entre o que dizes e fazes, essa
é a única forma de não perder o rumo. É um desafio da vida.
O Nobel da Paz é um instrumento a serviço dos povos, nunca para a
vaidade pessoal.
Te desejo muita força e esperança e esperamos que tenhas a coragem de
corrigir o caminho e encontrar a sabedoria da Paz.
Adolfo Pérez Esquivel, Nobel da Paz 1980.
Buenos Aires, 5 de maio de 2011
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